Leonel Henckes

Liderança na gestão 4.0 e pessoas de teatro: o que uma coisa tem a ver com a outra?

Por Leonel Henckes

Liderança na gestão 4.0 e pessoas de teatro: o que uma coisa tem a ver com a outra?
@Nina Lacroix

No ano de 2020, após alguns meses trabalhando em casa, sendo desafiado a criar formatos de eventos digitais e com tempo disponível para atividades pessoais, decidi começar um MBA com foco em liderança na gestão 4.0 e inovação.

Apesar de já ter concluído um doutorado, por estar atuando na área de gestão cultural em uma Instituição cultural internacional, já vinha sentindo desde antes da pandemia uma vontade de conhecer melhor o universo empresarial e de negócios. Uma necessidade de embasar um pouco meu processo de learning by doing e aprimorar minha performance desde uma perspectiva menos experimental e intuitiva. Depois de muito pesquisar cheguei até o MBA em liderança, inovação e gestão 4.0 da PUCRS e apesar da insegurança quanto ao formato EAD, decidi arriscar.

Neste momento, enquanto estou trabalhando na escrita do TCC de conclusão de curso e estudando para a prova final, voltei a me conectar com meu back ground em teatro, como ator, diretor e pedagogo da atuação para o lançamento de um livro, resultado da pesquisa do doutorado em Artes Cênicas. Participei novamente do congresso anual de pesquisa e pós-graduação em artes cênicas do Brasil e retomei minha prática artística. Tudo isso, me fez confirmar uma sensação que me atravessou em todas as aulas do MBA.

Enquanto assistia as aulas sobre alta performance, gestão humanizada e recursos humanos felizes, liderança, economia circular, cultura organizacional, diversidade, a era do cliente, design thinking e métodos ágeis, cultura organizacional, gamification, tecnologia e inovação, AI, analytics, impacto social etc., me deparava inúmeras vezes com abordagens, conceitos e estratégias “inovadoras” que pareciam ter sido tiradas de algum livro sobre direção teatral ou de algum método de preparação de atores. É como se o mundo empresarial, corporativo, estivesse reconfigurando agora (ou pretende nos próximos anos) seus modelos para se adequar às transformações que vivemos, ao tão falado mundo BANI, e para isso estivesse recorrendo a ferramentas, mindsets e frameworks cujas bases estão presentes no modus operandi da prática teatral a séculos. 

Obviamente, o teatro em sua característica de arte total, agregadora e multidisciplinar foi agregando ao longo da história conhecimentos e técnicas oriundas de tradições como a da ioga, foi fundindo filosofias orientais com ocidentais, psicologia e neurociência, práticas somáticas ou artes marciais e nesse processo sistematizou teorias e práticas que serviram aos desafios encontrados no interior do fazer teatral. Esse movimento segue acontecendo e atualmente agrega o diálogo com dispositivos tecnológicos e digitais num fluxo incessante de inovação, transformação e reinvenção. Ao longo de séculos e de inúmeras mudanças globais que abarcam desde sistemas econômicos e políticos até descoberta de novos continentes ou revolução industrial, o teatro sempre conseguiu se reinventar independente do tamanho da disrupção que o tenha posto em xeque.

Diante dessa reflexão e tomando por base o que conheci do mundo corporativo no MBA, na prática profissional em produção e gestão cultural  e em relação com a minha experiência no mundo do teatro, cheguei a uma conclusão. Se eu fosse questionado hoje sobre o perfil de profissional e o tipo de preparação e experiência que contemple a demandada por uma liderança na gestão 4.0, responderia sem pestanejar: uma pessoa de teatro principalmente da direção/encenação, mas também da atuação.

Formação do time e papel da liderança no contexto teatral

Explico: um “time” no teatro é formado pela pessoa que assume a direção ou encenação, as pessoas da atuação (atores, atrizes, dançarinos, músicos), as pessoas que criam e gerenciam as equipes de iluminação, cenografia, figurino, maquiagem, adereços, música, audiovisual. Existe ainda a pessoa que cuida da dramaturgia e as pessoas responsáveis pela preparação (training) dos profissionais da atuação. Numa outra instância, participam do processo os técnicos e maquinistas, os produtores e gestores financeiros e a equipe de marketing e divulgação. Como o teatro opera com patrocínio, podemos incluir nesse time os “investidores” ou “acionistas”. Essa estrutura aparece em tamanho maior ou menor a depender do projeto e em casos de obras de teatro startup ou no caso do Brasil em que financiamento para o teatro é algo raro, podem ser assumidas por apenas um dois profissional.

O processo de criação de uma peça de teatro pode começar por diferentes lugares. Em alguns casos tem-se um texto dramático que é estudado pelo encenador/diretor a partir de metodologias diversas. O diretor produz, então, um conceito e um projeto de encenação. Esse projeto é apresentado aos demais criadores do time que iniciam um processo similar ao design thinking com muita pesquisa, esboços, estudos até que chegam a um MVP. O próximo passo é a prototipação e ciclo de testes e experimentos ou o processo de criação e produção do produto final ativando todos os demais integrantes do time.

Um outro exemplo de abordagem do processo de criação de uma peça pode ser aquele que parte da reunião dos agentes criativos, geralmente atores, atrizes, encenador/diretor, por exemplo, as chamadas práticas pela via da organicidade. A partir de metodologia experimental prática com base em pesquisas corporais, vocais, situacionais realiza-se muitos testes e experimentações e com base no material produzido começa-se a montar um MVP que depois será aprimorado até se chegar ao espetáculo. Nesse processo, os demais agentes criativos e técnicos são agregados aos poucos e o processo segue um fluxo horizontal e colaborativo.

Atores, diretores, encenadores

Acredito que estes dois exemplos sejam suficientes para o que se pretende discutir neste texto. Destaco, pois, para além do framework de processo, o fato de que temos um diretor/encenador que lidera um time multidisciplinar formado por pessoas e, portanto, sujeito a crises das mais diversas e que precisa estar constantemente mentorando os diferentes setores criativos, estimulando e inspirando a equipe, mantendo-a coesa e unida. Esse profissional deve garantir autonomia criativa e decisória para todos os agentes envolvidos no processo e dar feedbacks constantes. Todos os dias, ao começar um ensaio, é necessário apresentar os objetivos a serem alcançados e conduzir o processo ou acompanhar o processo da equipe e ao final de um ensaio com atores e atrizes, por exemplo, é fundamental que haja um feedback preciso e são feitas tomadas de decisão que nortearão os próximos passos. 

Durante o processo de criação de uma peça de teatro, são inúmeras as decisões a serem tomadas com base em dados concretos ou seguindo a intuição. Igualmente, o número de crises e problemas manifestos são incontáveis e as soluções precisam ser rápidas e muitas vezes tomas pela equipe o que exige plana confiança do líder/diretor/encenador. Não somente esse profissional como a maior parte da equipe deve dominar skills como resiliência, aprendizado constante, capacidade de foco, trato com pessoas, análise de dados, criatividade, improvisação, mudança brusca de rota, inovação e adequação a novas circunstâncias.

Vamos ajustar, pois, essa lupa para o profissional ator/atriz. Embora sua função seja basicamente dar vida a um personagem e operar de maneira eficiente na cena, há um elemento de liderança muito importante no trabalho desses profissionais. As tomadas de decisão ocorrem desde o início do processo e envolvem escolhas estéticas, perspectiva de abordagem de um discurso ou de uma orientação poética, relacionamentos e posição estratégica na cena. Esse profissional precisa, igualmente, ter um olhar multidisciplinar e entender da maquinaria cênica (iluminação, música, cenografia, estrutura técnica da caixa cênica) para poder lidar com todos esses elementos simultaneamente durante sua performance. 

Durante o processo criativo o ator está em constante exposição e em relação com outros integrantes da equipe e colegas de cena. Por ser colocado o tempo todo diante de problemas e desafios trazidos pela cena, texto, situação, circunstâncias propostas ele precisa produzir soluções ativas ou respostas que ajudem a solucionar o problema posto. Por isso, acaba se tornando um especialista na resolução de problemas e em resiliência.

Durante a performance, além da interação multidisciplinar com os elementos da cena, precisa estar com atenção e foco absolutamente controlados e, na relação direta com o público diante de si, precisa tomar decisões rápidas, confiar no processo e garantir o fluxo e ritmo do trabalho. Deve autoestimular-se constantemente manter o contato com os outros humanos na cena de forma orgânica. O trabalho é tão complexo que exige o estado de flow ao mesmo tempo em que a atenção está atenta ao entorno perceptivo que toma decisões como avançar ou recuar para entrar na luz, acelerar ou desacelerar o ritmo para manter a atenção do público, resolver uma situação na qual o colega esqueceu um texto ou cuja entrada atrasou por conta de um problema com o figurino. Esse profissional precisa confiar no time e assumir a liderança em todos os momentos do processo até o fechamento da cortina.

Fica evidente no descrito acima, como esses dois profissionais, a partir de suas experiências, adquirem habilidades absolutamente fundamentais para a liderança na gestão 4.0. Quero, pois, ampliar um pouco mais o contexto e ressaltar que estou falando de artistas de teatro do Brasil. Essa diferenciação é importante visto que se tomarmos um ator alemão como exemplo, apenas o descrito acima sobre sua performance na cena poderia ser considerado e apenas no trabalho dos protagonistas visto que naquele país a estrutura é extremamente hierárquica e tão perfeita em termos logísticos e técnicos que há pouco espaço para desafios e surpresas.

Nesse sentido, tanto o diretor/encenador quanto os atores/atrizes em muitos casos se tornam experts na criação e gestão financeira e executiva de projetos. Tudo começa na elaboração da ideia e na captação de financiamento para sua execução. Nessa fase, esses artistas precisam formatar suas ideias com foco em venda. No passo seguinte, precisam convencer potenciais investidores de que a ideia é interessante e relevante. Uma vez viabilizado o financiamento, começa o processo de formação da equipe que envolve escolha dos melhores profissionais e contratação. Há um jargão no meio teatral segundo o qual o sucesso de uma peça começa na formação da equipe. Todo o debate sobre processo seletivo e contratação no campo empresarial confirma que essa máxima vale para o mundo dos negócios também.

Embora possa existir uma gestão especializada que contrata o diretor e demais artistas (caso de produções grandes como musicais) na maior parte dos projetos teatrais no Brasil, são os próprios diretores ou atores-empreendedores os responsáveis por isso. Essa atuação empresarial continua ao longo de todo o projeto no trato com as equipes de comunicação e na definição de estratégias de marketing, no relacionamento com stakeholders e shareholders, na coordenação da administração dos recursos financeiros disponíveis, recursos humanos e prestação de contas ao final do projeto passando por pagamentos e afins.

Não quero com isso dizer que esses profissionais do teatro dominam todos esses tópicos, mas, que são convidados a liderarem seus empreendimentos artísticos numa perspectiva que leva em conta a gestão humanizada de pessoas, a preocupação com ciclos sustentáveis de produção e administração de recursos, a gestão de crises e busca de soluções rápidas, inovadoras e muitas vezes não preditivas. São profissionais que atuam constantemente na gestão de times multidisciplinares e diversos e que lançam mão de estratégias holísticas, criativas e ou tradicionais e experimentadas para estimular e motivar o time. Além disso, assumem a função de mentores, professores e coach em diferentes momentos e por diferentes necessidades.

Desfecho

Para finalizar, quero dizer me entusiasma ter descoberto a partir do MBA, o quanto profissionais das artes e da cultura tem de know-how e habilidades desenvolvidas pela experiência na própria área e que figuram como aspectos valoroso e fundamentais quando se pensa em liderança e gestão no futuro. Em liderança na gestão 4.0. Talvez seja interessante para ambos os setores tal aproximação. Carece aos artistas de teatro ainda e muito, a formatação de modelos de negócio viáveis em escala e geradores de lucro. Por outro lado, artistas de teatro são mestres naquilo que o mundo dos negócios busca desesperadamente aprender e desenvolver. E, mais importante, o teatro e suas técnicas trabalha essencialmente com o humano e seus processos e culturas. Nisso pessoas de teatro são extremamente especializadas.

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