Leonel Henckes

Teatro digital: um movimento exponencial disruptivo nas artes cênicas

Leonel henckes em cena do espetáculo solo horla um movimento exponencial disruptivo
Leonel Henckes em cena na peça digital "Horla, o Inimigo Invisível"

A pandemia do Coronavirus acelerou muitos processos e antecipou experiências e a implantação em escala de novas tecnologias. Forçou a entrada no mundo digital de uma forma abrupta e com pouco espaço para reflexões e preparação. Tudo isso exigiu uma rápida adaptação de pessoas e organizações para responderem e sobreviverem essa nova era. Acreditar que tudo voltará a ser como antes é no mínimo ingênuo visto que a tendência agora é vermos saltos exponenciais disruptivos sequenciais e um mergulho cada vez mais profundo ou um salto cada vez mais alto no sentido de implementar tecnologias, digitalizar processos e democratizar acessos. Isso exige de nós, humanos, uma mudança efetiva de mindset e o entendimento de que estamos num momento importante de mudança de paradigmas globais. 

O teatro é uma arte que remonta a tempos primitivos e ao longo de sua história passou por todas as fases evolutivas da humanidade sobrevivendo a guerras, mudanças de regimes, revolução agrícola, industrial, tecnológica e, certamente, encontrará meios para seguir existindo nessa nova era marcada pela disrupção e pela inteligência artíficial. Como instrumento filosófico e de entretenimento, espaço de experimentação e risco e como plataforma originalmente híbrida de expressão de narrativas, o teatro é o lugar onde todas as tecnologias, linguagens, formatos e meios de expressão podem ser absorvidos. É, também, o local que permite o desenvolvimento de todas as habilidades humanas que o futuro demanda para o mundo do trabalho.

Em 2008, como aluno de direção teatral na Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, realizei um experimento -raro na época -, a transmissão online ao vivo de uma peça de teatro. Montei a peça pensando na transmissão ao vivo com uso de três câmeras e a transmissão contou com um diretor de vídeo que na época estudava a linguagem do vídeo-clipe musical. Entendemos que era necessário observar duas montagens dramatugicas que operariam simultâneamente: a montagem da cena no teatro e a montagem do que o público iria receber no vídeo. Após muita conversa e pesquisa, entendemos que a dinâmica de cortes e o ritmo do video-clipe de música, traria a pulsação necessária à peça digital. A peça, “Últimos Capítulos ou Primeira Tentativa”,  ficou conhecida no Centro de Artes e Letras da UFSM, o CAL, como a peça com uma grua em cena.
Contamos com o apoio do Centro de dados da Universidade que tinha um departamento experimental de conferencias online, equipamento e estrutura. O Youtube, na época e na minha bolha, não era opção possível para uma live, portanto, usamos o site do CPD.

Agora, 12 anos depois, o teatro digital desponta com força. Na época não vi o potencial disruptivo do experimento, nem fui estimulados pelos professores ou colegas. Nunca mais repetimos o experimento que foi de grande sucesso. Agora na pandemia do COVID-19, quando esse formato se consolida no Brasil (me parece que já uma realidade na Asia), aproveitei para experimentar novamente. Nesse texto, três experimentos nos quais participei durante a pandemia e que mostram que o teatro digital é um movimento exponencial nas artes cênicas. Assim sendo, as artes também precisam estar atentas aos movimentos exponenciais, não é assunto apenas para o Vale do Silício.

Vou falar, pois, da minha experiência durante pandemia que se mostrou um laboratório de rodagem de experimentos em teatro digital. Logo no início, com o desejo de digitalizar a programação cultural do Goethe-Institut Salvador-Bahia, local onde trabalho, foquei meus esforços em aprender a usar as tecnologias disponíveis para realização de eventos online ao vivo. Descobri em tutoriais no Youtube, que o pessoal do videogame já trabalhava com streaming de jogos e, portanto, já havia aberto muitos caminhos. Existiam, contudo, algumas limitações de plataformas como o Zoom, Google Meets e etc que foram ativando funcionalidades ao longo do período. Nessa fase de pesquisa, descobri o aplicativo OBS Studio que permite transformar seu computador numa ilha de corte e transmissão. Descobri que minha conexão de internet não era potente o suficiente e que eu precisava comprar um cabo de ethernet. Aprendi a capturar tela, a configurar live no youtube e no facebook, a hackear o Instagram para transmitir o sinal do OBS nos stories e etc. Descobri que haviam muitas possibilidade poéticas interessantes. Aprendi, também, que era possível transformar smartphones em webcams e conectar microfones no computador sem grandes dificuldades. Finalmente, descobri que existiam cabos virtuais de áudio e webcams virtuais que permitem levar o som do Zoom para dentro do OBS e o sinal de audio e video do OBS para dentro de uma janelinha de Zoom. 

Embora eu tenha listado tudo num único parágrafo, esses aprendizados foram acontecendo ao longo dos experimentos em resposta a dificuldades e percepções práticas. O tempo todo o experimento de Santa Maria pulsava na minha memória, mas, a tecnologia dessa vez não era a do CPD. Era algo que eu podia fazer em casa.

O primeiro experimento

“Ar-f-ar” foi o primeiro experimento em teatro digital realizado. Consistiu num projeto liderado por mim no Goethe-Institut Salvador-Bahia e inspirado numa iniciativa de uma dramaturga alemã chamada Ani Rave e que trouxemos para o contexto brasileiro. O projeto foi batizado de “Sala de Dramaturgia Virtual Brasil” e reuniu 5 dramaturgos e dramaturgas de diferentes regiões do Brasil para juntos, escreverem um texto teatral inédito num documento google docs. O conceito girava em torno da criação colaborativa e interativa na medida em que o público poderia ler o texto em processo e deixar comentários.

Uma vez concluído o texto, ele foi lido por atores em um experimento que foi um dos primeiros em teatro digital no país. Com direção de Diego Pinheiro e Aldri Anunciação, os atores e atrizes de São Paulo e da Bahia atuaram na plataforma Zoom cada um em sua casa num formato que convencionei chamar de básico no contexto das possibilidades deste teatro. Transmitimos a peça em um canal do youtube. 

Descobertas

Esta experiência nos fez compreender alguns aspectos importantes para serem considerados nos próximos experimentos.

  1. entendimento da necessidade de uma composição fotográfica da cena através e direção de luz e de composição dos elementos que aparecem no vídeo. 
  2. planejamento de cortes de câmera em função da dramaturgia definindo quem era visto e como era visto. Neste experimento utilizamos 2 modelos batizados de acordo com a função no Zoom, a tela cheia e o mosaico. Um segundo recurso foi o fechamento da câmera manual por parte dos atores usando uma fita isolante. 
  3. uso de figurinos, maquiagem e adereços.

Na época deste experimento utilizávamos o OBS apenas como recurso para cortar os menus da plataforma Zoom e fazer as transições entre os modelos de cena de forma mais fluída. 

Após sua realização entendemos que estávamos diante de uma nova linguagem possível que permitia explorar percepções e sensações similares as do teatro num contexto digital. Também, que permitia que artistas trabalhassem juntos em diferentes regiões geográficas. 

Ao analisar os gráficos de audiência do Youtube identificamos os momentos de maior atenção do público e os de desengajamento, algo impensável no teatro analógico. Entendemos, através da análise dos dados, que era importante considerar o tempo de cena e o tempo total visto se tratar de uma interface diferente se comparada ao teatro tradicional no qual o público está preso num espaço com poucas opções de fuga. Identificamos que o risco do “ao vivo” estava mantido e tivemos certeza de que digitalizar o teatro não se trata apenas de transmitir uma peça ao vivo através de câmeras, trata-se da elaboração estética de uma dramaturgia de cena audiovisual que pode utilizar expedientes do cinema, por exemplo, e que deve atentar para a composição semiótica de cada quadro. Também, que o processo exige a observação de um elemento novo que são os dados que medem a atenção do público no decorrer da peça. Além de todas estas constatações, o entendimento de que digitalizar o teatro requer mais do que colocar o ator dando um texto na sala de casa diante de uma câmera, foi fundamental para avançarmos. 

O segundo experimento

“Namibia, Não!” é um marco referencial da dramaturgia brasileira. O texto foi escrito por Aldri Anunciação em 2011 e apresenta uma narrativa distópica na qual, no futuro, uma medida provisória do governo obriga a todos os negros e negras do Brasil voltarem para algum país da África como medida de reparação histórica. A peça foi encenada e está em cartaz desde então com temporadas em todo o Brasil. Em 2021 será lançado filme dirigido por Lázaro Ramos e intitulado Medida Provisória. O texto está disponível no livro Trilogia do Confinamento – Namíbia, Não!, Campo de Batalha e Embarque Imediato, publicado pela Editora Perspectiva.

O experimento realizado na pandemia pretendeu ser uma leitura dramatizada do texto com participação dos atores Aldri Anunciação (autor do texto) e Fabrício Boliveira (que também dirigiu) além de Gideon Rosa, Tiago Almasi e Márcia Lima. 

A leitura acabou transformando-se numa peça de teatro apresentada no Zoom Webinar e no Youtube. Nesse experimento testamos a colocação do público dentro de uma sala de webinar assistindo aos atores que estavam na sala dos palestrantes. O recurso de edição audiovisual, nesse caso, resumiu-se a ativação do modo tela cheia ou mosaico pelo operador e pela abertura e fechamento de câmera pelos atores. 

Ao mesmo tempo, a peça foi transmitida pelo Youtube após edição em tempo real pelo OBS Studio. Buscou-se, ali, um tratamento mais cinematográfico. 

Uma terceira camada foi ativada pelo ator Fabrício Boliveira que transmitiu sua atuação ao vivo pelo Instagram como se mostra-se o backstage. 

Diante de uma obra de dramaturgia que, embora consista numa situação de confinamento de dois personagens, demanda um ritmo e tensão de narrativa de ação, o desafio foi criar essa sensação na janela do Zoom. Nesse caso, os dois atores protagonistas tomaram seus laptops em suas mãos e atuaram livremente percorrendo os espaços de suas casa lançando mão de ângulos e posições diversas. Igualmente, buscou-se recorrer a maquiagens e adereços para tornar tudo mais interessante. 

Ao final da apresentação o público do Zoom participou de um bate-papo de quase duas horas e manifestou uma profunda admiração e entusiasmo com o formato de teatro experimentado (lembro que nessa época havia poucas experiências em curso no país).

Ficou evidente, também, que a sensação de estar numa sala como a do teatro convencional relatada pelos participantes que acompanharam o experimento pelo webinar, foi relevante para esse público. A sensação de fazer parte de algo desde dentro e com o risco de ser chamado a entrar (recurso de transformar ouvinte em palestrante). Por outro lado, o público do Youtube também manteve-se interessado e vivenciou uma experiência teatral autêntica. Isso nos mostrou que ambos os modelos são funcionários reservadas às limitações de cada um.

O terceiro experimento

Chego, finalmente, ao terceiro experimento, “Horla, o Inimigo Invisível”. Nesse caso empreendemos um ato um pouco mais radical. Munidos dos dados e do aprendizado extraído dos dois experimentos anteriores, Aldri Anunciação (diretor da peça) e eu (ator na peça) entendemos que:

  1. O teatro digital deve acontecer em espaço cênico apropriado e não na sala ou quarto da casa. 
  2. É importante lançar mão do uso de múltiplas câmeras pensadas numa lógica de montagem cinematográfica (Eisenstein).
  3. É importante um figurino apropriado, a concepção de uma cenografia e uso de recursos de iluminação.

Com essas postulações na mão, tomamos o solo “Horla” que criei em 2007 no curso de artes cênicas da Universidade Federal de Santa Maria com a orientação do diretor Paulo Márcio da Silva Pereira e o adaptamos para a nova linguagem. O trabalho foi escolhido por trazer a situação de um homem confinado que luta contra um ser invisível, ou seja, percebemos haver uma analogia possível com o tempo pandêmico vivido. 

Na primeira etapa do processo de criação, buscamos uma sala num prédio não usado da família em Salvador, Bahia e pintamos ela totalmente de preto como uma Black box. Montamos ali um cenário e, usando os conhecimentos adquiridos na pesquisa inicial relatada no início deste artigo, usamos smartphones como câmeras. 

Na segunda etapa, dividimos  a peça em quadros e buscamos compor cada um deles em luz, som, fotografia e intenção. Criamos uma espécie de storyboard da obra para guiar posicionamento de câmera, enquadramento e marca de atuação. 

Na terceira etapa, foi necessário trabalhar sobre a atuação no sentido de ajustá-la ao audiovisual removendo, assim, excessos e agregando tempos que normalmente no teatro não podem ser dilatados. 

A peça comercializou ingressos e o acesso do público se deu Zoom Webinar sendo que a experiência de expectação foi similar à do youtube visto que todos os cortes eram feitos na ferramenta OBS e o sinal era lançado na plataforma Zoom através de um plugin de webcam virtual. 

Neste experimento estive como ator e também como realizador e técnico. Dentre os experimentos realizado, considero o mais completo em termos de composição poética e de experiência do espectador. Desenvolvemos uma linguagem singular a partir do diálogo texto-atuação-elementos e câmera. Cortes e enquadramentos de câmera em tempo real e a contracenação do ator com a câmera e com o operador de câmera trouxe um elemento especial ao trabalho. No que diz respeito a experiência do público, há sempre a dificuldade de encontrar uma homogeneidade no acesso aos dispositivos tecnológicos que possibilitam a melhor fruição da obra, contudo, ficou evidente pelos feedbacks que o acontecimento teatral aconteceu.

 

Futuro

Certamente nos próximos meses ou anos muitas outras tecnologias e dispositivos serão criados trazendo outras opções criativas para diretores, atores e dramaturgos. Já ficou evidente que o público gosta da experiência e que para artistas é um espaço novo de experimentação e que oferece muitas possibilidades. 

Do ponto de vista do conceito de organizações exponenciais, o teatro digital provoca uma disrupção no modelo convencional que é limitado em termos de alcance e é caro para produzir e alavanca um modelo de baixo custo de produção e de acesso do público, amplamente acessível e democrático com impacto no desenvolvimento humano a partir do uso de tecnologias digitais. Imagine o que é possível para o teatro com todo seu potencial criativo trazido por seus fazedores, num contexto 5G de velocidade de conexão ou com recursos VR (Virtual Reality)? Estes experimentos de teatro digital (não apenas de digitalização do teatro) abrem caminho para infinitas experimentações possíveis no modo de fazer, na incorporação de dispositivos e outras tecnologias, na criação de narrativas e exploração de modos de provocar sensações no espectador sem falar das possibilidades híbridas após o desenvolvimento da vacina. 

Me considero hoje um entusiasta do teatro digital ou teatro virtual (o nome ainda deverá ser criado) e vejo esse movimento como um fenômeno disruptivo nas artes da cena.

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