Leonel Henckes

Realismo capitalista e organicidade no trabalho do ator em Thomas Ostermeier

Embora o diretor alemão Thomas Ostermeier se considere conservador em sua estética, é considerado um dos grandes nomes da encenação contemporânea no mundo. Suas peças já circularam em todas as grandes capitais mundiais. Desde 1999 ele é diretor artístico do teatro Schaubühne de Berlim e, ao longo desses últimos anos, transformou-o em uma referência no que se refere a inovação cênica na Alemanha, atraindo, inclusive, um público expressivo de pessoas de todas as idades e de diversos países do mundo.

De certo modo, as peças de Thomas Ostermeier apresentam a busca por um novo tipo de realismo que ele nomeia a usando o conceito de realismo capitalista e que coloca os conflitos dos personagens e seu comportamento como consequências do sistema no qual estamos inseridos atualmente. Para tanto, não recorre a dramaturgos do nosso tempo, mas, vai buscar principalmente em Shakespeare e Ibsen seu material de trabalho. Nesse sentido, Ostermeier chama a minha atenção por sua capacidade de acessar o coração dessas obras clássicas e atualizá-las ao contexto de hoje sem descaracterizá-las.

Embora suas encenações sejam contemporâneas em suas opções estéticas, elas possuem aspectos extremamente tradicionais incorporados. De certo modo, é isto que torna a obra deste diretor tão interessante: sua capacidade de adaptar textos clássicos e conferir a eles uma atualidade impressionante. Tudo isto reflete, também, no estilo de atuação dos atores que está num limiar entre o ator da representação e algo diferente, uma qualidade difícil de descrever, mas, que foge do psicologismo da construção mimética dos personagens ao mesmo tempo em que constrói e apresenta figuras humanas sobre o palco. Talvez, esse “algo difícil de descrever” esteja radicado numa atitude na cena, em um nível de entrega e abertura e em uma técnica específica de mobilização de presença e energia.

É notório, ao observar a atuação dos atores nos espetáculos de Ostermeier, que há um trabalho muito forte com ações internas. Não há, contudo, qualquer indício de bombeamento de emoção ou o que se poderia chamar de uma atuação sentimental, embora os atores e atrizes estejam sempre muito vivos e autênticos sobre o palco. Tampouco trata-se de um teatro com ênfase na corporeidade, o que não significa falta de presença física ou a existência de uma desconexão psicofísica. Pelo contrário, levando-se em consideração os elementos relacionados a organicidade, todos estão marcadamente presentes no trabalho dos elencos dos espetáculos do encenador. Outra característica que parece estar presente nas estratégias de condução dos atores utilizadas por Ostermeier, é a valorização da singularidade e das habilidades de cada ator, o que o conecta ao pensamento recebido da escola de nível superior Ernest Busch Schule de Berlim, na qual ele estudou a partir de 1992, poucos anos após a reunificação. Tal referência é confirmada por Ostermeier em uma entrevista[1] na qual é questionado sobre o modo como percebe o trabalho do ator. Ele cita a Ernest Busch e os velhos professores com os quais teve contato naquela escola situada no lado da Alemanha oriental. Ele diz, na referida entrevista, que lá o ator recebia uma formação na qual a força e o desenvolvimento de habilidades experimentadas eram de grande estima em lugar do desenvolvimento de uma técnica psicológica. “Menos olhar para o interior de si mesmo, de onde você vem, para o quê se move em você e mais olhar para fora, para o que há ao seu redor, para a sociedade na qual você vive. Mais, olhar para o que te cerca e não apenas para um caráter individual interno. Mais uma perspectiva sociológica do teatro.”

A fala de Ostermeier citada, dialoga muito bem com o principio-procedimento contato a partir do entendimento de que é no entre da relação eu – outro que surge a ação e a criação. Ao mesmo tempo se afasta de qualquer perspectiva metafísica como se verifica em Grotowski e no uso que ele faz do referido princípio. Contudo, entendo que o ator da organicidade opera exatamente nesse lugar que não é o da introspecção e do mergulho auto-regozijante no si mesmo, mas, no lugar de um movimento que parte do interior para o exterior e do exterior para o interior como através de uma espiral de mão dupla. Além disso, tal perspectiva do trabalho do ator está muito mais próxima a do ator stanislávskiano, ou seja, um sujeito conectado com o seu tempo e com o contexto histórico, político e cultural no qual está inserido do que qualquer outra leitura do mestre russo.

De volta aos fatos, no final dos anos de 1960 e início de 1970, o teatro de diretor ganha força na Alemanha. Como consequência dos novos experimentos estéticos, elementos como a narrativa, o personagem, a história e etc., são deixados em segundo plano e substituídos por um enfoque conceitual e filosófico, amplamente influenciado pelos pós-estruturalistas franceses. Thomas Ostermeier viveu esse período e se coloca como um diretor contemporâneo que olha para esta história e que passa a sentir saudade de uma narrativa, de personagem e de história.

“Meu teatro, justamente por isso, volta a ser um teatro narrativo. Quer dizer, depois desses 30 anos de “torre de marfim” do Teatro Alemão, eu justamente quero superar isso. Por que eu trabalho com personagens, histórias e eu quero falar para o público que ele pode vivenciar esses personagens e essas histórias sem precisar de um doutorado, de ler os pós-estruturalistas franceses, sem ter lido todos os autores e visto todas as exposições dos últimos 15 anos, sem ter estudado teatro. Esta é a minha saudade, por que eu mesmo quando eu ia ao teatro, eu sempre tive a sensação de ser muito burro para entender aquilo que estava sendo apresentado.”[2]

A fim de melhor apresentar a obra desse artista, irei me ater a montagem de Hamlet, que assisti no ano de 2013 no teatro Schaubühne. Nesse caso, é importante pontuar que, embora suas produções sejam realizadas dentro de uma instituição com um elenco de mais de 30 atores contratados, Ostermeier procura trabalhar sempre com os mesmos atores em diferentes montagens formando, assim, uma espécie de grupo inserido no interior do ensemble do Schaubühne. Dentre todos do elenco, Lars Eidinger aparece como sua grande estrela tendo protagonizado a maior parte de suas produções nos últimos cinco anos. Detentor de uma presença extremamente forte, Eidinger parece traduzir a essência do que busca Ostermeier, no que tange ao trabalho do ator, em suas montagens.

Fica muito claro ao assistir suas peças, que chave de atuação é realista, mas, não se trata do realismo do início do século, mas de uma tradução dilatada do cotidiano atual. Nesse caso, parece haver a busca por um realismo do palco, da cena e não da reprodução realista de situações cotidianas. Para explicar melhor, trata-se de uma atuação forjada na ação real diante do público e não na representação de personagens. Nesse sentido, Ostermeier parece estar em completo diálogo com o ator da vivência de Stanislávski e, por conseguinte, do ator da organicidade como procurarei deixar mais claro a seguir. Há uma enorme entrega de todos os atores que estão integralmente envolvidos com as situações. Isto é perceptível pelo domínio do ritmo, pelo estável e ativo apoio dos pés no chão e, também, pelos dedos das mãos que recebem impulsos o tempo todo, não ficando mortos em nenhum momento.

Outra característica que pode ser depreendida das encenações de Ostermeier e que se referem aos modos de atuação, é a relação com circunstâncias reais e não apenas imaginárias. K. Stanislávski, sugere que o ator jogue com as circunstâncias imaginarias propostas pelo texto. Se analisarmos o que nos apresenta Toporkov (2004) sobre o processo criativo de Tartuffe com Stanislávski e o que está no livro Vachtangov Methode (2008), é perceptível que há uma ênfase maior no jogo do ator com as circunstâncias concretas propostas pela situação e em função das condições estabelecidas sobre o palco. Nesse sentido, poderíamos aferir que no Sistema de Ações Físicas, o ator segue uma lógica imaginária, mas, também está em conexão e reage ao que lhe afeta no seu entorno perceptivo, seja física ou espiritualmente (Bemerkungsgeist). A estratégia de Ostermeier parece recorrer ao uso de circunstâncias reais, concretas, físicas como estímulo, ou seja, água, terra, sons ou o tamanho do espaço.

Acerca do uso de materiais orgânicos no palco, como água e terra (em praticamente todas as peças os atores são sujados ou molhados) em uma entrevista para a TV[3], Ostermeier diz que recorre aos materiais orgânicos porque eles obrigam o ator a reagir sem representar, ou seja, ao estar molhado ele é obrigado a agir naquela condição, não é possível ignorar que o corpo está molhado, existe o desconforto da roupa colada no corpo, o cabelo pingando e a sensação de frio.

Esta estratégia fica evidente na sua montagem de Hamlet na qual elementos como água e terra estão presentes o tempo todo e afetam os atores no palco. O cenário de Hamlet compreende uma superfície de terra sobre a qual os atores e atrizes atuam. (foto abaixo) A peça começa com o enterro do rei assassinado e uma chuva é simulada por uma mangueira segurada pelo próprio Hamlet. Aquela água enxarca a terra e molha os atores que ficarão naquela condição até o final do espetáculo. Ademais, a terra molhada se transforma num barro que vai sujando os personagens na medida em que transcorre a ação. Inevitável é, nesse caso, ignorar o corpo molhado e a sensação do barro preso ao cabelo e ao corpo. Isso obriga, conforme relatou Ostermeier, o ator a reagir àquele material orgânico, com aquelas sensações e com a dificuldade de andar sobre aquela superfície de barro. As circunstâncias utilizadas para estimular os atores e suas ações saem do plano apenas imaginário e adquirem materialidade e capacidade de afetação objetiva, física.

Lars Eidinger em cena de Hamlet no Theater Schaubuhne Berlin. Foto: Arno Declair/2008. Disponível em: https://www.schaubuehne.de/de/produktionen/hamlet.html/m=318 Consultado em: 19/07/2021.

Na cena inicial de Hamlet, por exemplo, no casamento da sua mãe Gertrudes com o rei assassino, há um momento em que Hamlet (Lars Eidinger) cai literalmente com a cara no barro a ponto de ao retornar ter a boca cheia de terra, ou seja, o realismo não é apenas uma estética, é um recurso poético concreto na cena a partir dos elementos e da relação do ator com esses elementos. Não parece haver espaço para representação, salvo em cenas de morte nas quais o diretor recorre a soluções extremamente metafóricas e teatralizadas, talvez, justamente para acentuar a impossibilidade de fazer aquilo de modo real.

Lars Eidinger em uma entrevista publicada pela coleção backstage da editora Theater der Zeit, declara que em Hamlet ele experimentou pela primeira vez a transformação total de si mesmo no personagem, algo que antes ele não buscava. “Antigamente eu achava facinante me esconder atrás do personagem e vez por outra espiar através dele”. (EIDINGER, 2014, p. 14) Contudo, ao assistir ao espetáculo, embora seja perceptível que o ator está extremamente dentro da situação, completamente entregue, há momentos em que ele justamente realiza este movimento de sair e entrar, do princípio do on-line e do off-line do qual falei anteriormente. Enquanto o ator da organicidade está constantemente no estado on-line, o ator contemporâneo parece oscilar entre os dois estados como se isto fosse um dispositivo técnico do próprio ofício. Nesse sentido, quero dizer que esta característica aparece como um elemento presente no modo de atuação identificado nas encenações de Ostermeier e que ao mesmo tempo o aproxima e o distância do ator da organicidade.

Hamlet de Ostermeier permite visualizar, ainda, outras tendências bastante utilizadas no teatro contemporâneo, em especial o alemão, e que desenham um modo de atuação específico. Embora trate-se de uma narrativa clássica e a encenação busca apresentar as figuras escritas por Shakespeare, há exploração de recursos audiovisuais, da voz artificialmente microfonada e da ironia. Sobre a ironia, trata-se de uma forte característica do teatro alemão contemporâneo no qual o ator, critíca e ironiza o personagem e a situação ou, em teatros sem história e narrativa, a temática ou filosofia debatida. No caso de Hamlet, essa ironia está na composição dos personagens, principalmente da mãe de Hamlet, Gertrudes que é resultado, na referida encenação, de uma fusão da figura de Ofélia com Gertrudes. Em suas poucas intervenções, a atriz recorre a uma corporeidade sensual e se comporta como se fosse uma cantora pop como Lady Gaga ou Madona. Usa sempre um óculo de sol ao falar constrói sonoridades usando um microfone convencional com som extremamente artificial recorrendo, inclusive, a um tom de voz de cochicho ofegante, quase uma voz fantasmagórica. Nesse sentido, enquanto Eidinger recorre a uma atuação orgânica como Hamlet, a atriz que representa Gertrudes/Ofélia recorre a um registro artificial de produção de efeitos assim como todos os outros personagens na montagem. Isso cria um paradoxo interessante no qual, de um lado, há um ator (Eidinger) que opera na maior parte do tempo dentro dos parâmetros do ator da organicidade sendo possível, inclusive, a identificação de alguns dos sintomas de organicidade segundo Grotowski com a coluna vertebral constantemente mobilizada, o estado de fluxo que é interrompido nos poucos momentos de atuação off-line e na notória presença de uma linha invisível de relações, intenções e de ações/reações que Eidinger segue. Por outro lado, há um elenco inteiro seguindo outro estilo, pautado na produção de efeitos, sem uma efetiva entrega a vivência da situação proposta.

Gertrudes/Ofelia em cena de Hamlet. Direção de Thomas Ostermeier. Schaubühne Berlin. Foto: Arno Declair/2008. Disponível em: https://www.schaubuehne.de/de/produktionen/hamlet.html/m=318 Consultado em: 19/07/2021.

Nesse sentido, ao realizar uma análise das montagens de Ostermeier e das peças de Pollesch, aparece um gráfico em que as características do trabalho do ator da organicidade apareciam em grande quantidade nas peças do primeiro e praticamente desapareciam nas montagens dos dois últimos. Ao mesmo tempo acontece o fenômeno inverso se consideramos características contemporâneas como a auto-referencialidade ou a ironia. Ostermeier, nesse sentido, é um encenador contemporâneo que foca no modo de atuação dos seus atores, na representação de pessoas embora não se trate mais do Menschendarstellung ou da atuação realista do início do século passado. Trata-se mais do ator da vivência inserido em uma nova perspectiva dessa técnica que considera as singularidades do ator, que não busca a metamorfose total do ator, mas, procura ajustar o personagem às características e a personalidade do ator.

Acerca dessa questão da personalidade do ator, o crítico alemão e diretor da Ernest Busch Schulle de Berlim, Bernd Stegemann diz que na contemporaneidade a questão do ofício de ator,

“(…) será sempre mais respondida com a desorientante afirmação: os atores devem já ser capazes de falar e movimentarem-se, é também importante que sua personalidade seja aparente. A eterna exigência por uma completa personalidade, que deve trazer-se ao projeto autentica e auto-determinada, é o símbolo do regime de trabalho pos-moderno.” (STEGEMANN, 2014. p. 44)

Nesse sentido, a personalidade do ator passa a definir o quão bom ou interessante na cena ele é, e não mais a sua capacidade de se transformar em outra pessoa, no caso, um personagem. Quanto mais forte, singular e marcante for a atitude do ator na cena, mais eficiente será sua comunicação com o público, sua capacidade de mobilizar a atenção do espectador e, até mesmo, estabelecer contato com seus colegas de trabalho.

Nesse sentido, arrisco dizer que o treinamento do ator da organicidade corrobora com esta demanda do ator contemporâneo e, como diz Wolf-Diter Ernst (2012), “Meu entendimento é, também, de processo de ensaio e treinamento como preparação energética” (p. 15). Afirmação, estas, com a qual concordo considerando os pressupostos éticos e poéticos do ator da organicidade.

[1] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vaUHxKXjkwI. Consultado em: 10/01/2015.

[2] Entrevista concedida após a apresentação do espetáculo “Ein Volksfeind” em São Paulo/SP em 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HwU2o9bZcXA. Consultado em: 12/02/2015.

[3] Disponível no idioma alemão em https://www.youtube.com/watch?v=yOq_uhaqeOs. Consultado em 15/03/2015. Disponível no idioma inglês em https://www.youtube.com/watch?v=vaUHxKXjkwI. Consutlado em 15/03/2015.

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