Texto e infecção – o ator nas encenações do alemão René Pollesch
Por Leonel Henckes[1]
As encenações de René Pollesch estão entre as que mais me impactaram na cena contemporânea de Berlim. Por um lado, por me lançarem para bem longe de todas as convenções às quais eu me ligava e por outro por deixarem transparecer uma aproximação não óbvia com o trabalho do ator da organicidade. Sendo um dos precursores das tendências pós-dramáticas no teatro, é um dos encenadores atuais que seguem explorando o pós-drama e desenvolvendo-o em novas direções.
A primeira peça que assisti, em 2014, foi uma versão da história de Don Juan no teatro Volksbühne, onde Pollesch foi diretor residente. A encenação não possuía grandes efeitos visuais ou maquinarias cênicas, mas, havia algo de especial no modo de atuação dos atores. Algo que percebi em outros trabalhos do encenador que pude assistir naquele mesmo teatro. Nesse sentido, um dado relevante é o fato de que o elenco da montagem também se repetia em outras peças do encenador, o que permite comparar tendências e características e precisar uma poética de atuação própria dos trabalhos capitaneados por Pollesch. Um desses atores, que inclusive protagonizou Don Juan, é Martin Wuttke, que ficou famoso por interpretar Adolf Hitler no cinema em 2009 no filme Bastardos Inglórios do diretor Quentin Tarantino. Wuttke está presente em praticamente todas as peças de Pollesch a alguns anos e parece incorporar perfeitamente o estilo perseguido pelo encenador. Porém, para abordar as características das encenações de Pollesch, irei me focar em duas peças nas quais me parece haver mais elementos relevantes. Trata-se de Kill Your Darlling – Street of Berladelphia e Glanz und Elend der Kurtizanen, ambas de 2013.
No teatro do diretor e autor alemão residente no Volksbühne em Berlim, pode-se dizer que não há nenhum ator e também não há nenhum performer. Há uma “máquina de efeitos” (wirkungsmachine[2]) que manipula e joga com o texto. Este texto que envolve a dimensão oral e escrita, mas também, ideias, conceitos, um discurso e posicionamentos políticos. É claro que há jogo, atuação, humanidade, mas é uma articulação estética e estilística diferente. Em primeiro lugar, não existe uma preparação corporal especial para que o corpo esteja no palco com uma boa aparência ou com determinado virtuosismo, boa postura e etc. O corpo é apresentado sobre o palco como ele é, com todas as suas imperfeições e limitações ou, como diz Ernst (2012), “o corpo é apresentado como uma construção social”. A presença, nesse caso, é gerada por um esforço energético que é motivado pelo texto que está sendo dito e pelas ideias com as quais se está trabalhando. Ao mesmo tempo, é o corpo a base de todas as encenações de Pollesch. O texto e no caso o discurso, é expresso de forma tão forte que o corpo precisa fazer algo. Não pode permanecer morto, estático, inerte, precisa mobilizar-se.
Apesar de o texto ser o centro, é possível depreender a partir de escritos teóricos e críticos e entrevistas com o diretor, que o ator possui uma grande autonomia para escolher o que ele quer dizer, ou seja, é um processo democrático no qual o ator é também autor. Nesse sentido, em entrevista concedida a TV ZDF, Pollesch descreve seu processo de criação e escrita dramatúrgica. Ele diz que parte de uma situação pessoal que lhe tenha afetado de alguma maneira. A situação é apresentada para o cenógrafo, que por sua vez elabora uma proposta de espacialidade. A partir desta espacialidade, que define um universo e um contexto, a peça começa a ser produzida. Assim sendo, o processo segue com os atores que recebem o tema e um primeiro esboço do texto escrito por Pollesch e, junto com o diretor, empreendem um debate no qual podem expor suas opiniões, inferir críticas ou trazer teorias filosóficas. É importante que eles se posicionem crítica e politicamente sobre o assunto e que permitam que ideias verdadeiras e mobilizadoras sejam expressas. O conteúdo dos debates é trabalhado pelo Pollesch dramaturgo que escreve novas proposições de cena a partir do que foi levantado no plano intelectual. As cenas voltam para os atores rediscutem o tema permitindo que seus corpos sejam infectados por aquele conteúdo e reajam de forma física e muscular. Em nenhum momento é permitida a identificação ou expressão da subjetividade dos atores e atrizes. Há, ao contrário, um amplo processo de descentralização do sujeito, tanto como personagem que deixa de existir uma vez que não se trabalha numa via dramática, quanto do próprio ator enquanto sujeito dotado de ego e subjetividade. O elenco vai agora para o cenário e explora aquele universo e aquelas ideias no espaço. A qualquer momento o ator pode cortar alguma frase que não deseja dizer ou com a qual não concorde assim como pode acrescentar outras. Importante é que ele diga o que realmente pensa a respeito do tema ou, após alguns tratamentos dados pelo diretor-dramaturgo, da grande quantidade de conteúdo teórico e filosófico que passou a integrar a dramaturgia.
Assim vai sendo construída a cena deste diretor que desenvolveu em suas encenações uma linguagem bastante singular. Munido de forte apelo político, Pollesch leva ao palco questões contemporâneas complexas e universais, oriundas do universo pop ou com alusões ao sistema capitalista. Utilizando como mote situações aparentemente banais como o encontro de algumas pessoas em um determinado local para fumar um cigarro, seus temas percorrem o universo do homem comum no sistema capitalista atual dando ênfase a questões como a necessidade do amor e os modos de expressão deste sentimento, o individualismo, a solidão e a necessidade de contato entre pessoas, sexo, desejos, projeções e etc. Seus espetáculos são construídos basicamente sobre uma verborragia constante. Não é possível falar em diálogo uma vez que se trata de um grande monólogo dito por várias vozes. O encenador não parece buscar a identificação do ator com o texto, mas, a utilização deste como matéria concreta. O ator não utiliza sua subjetividade, e as ideias de personagem e de representação são anuladas em prol de uma relação que valorize o texto, ou melhor, o tema que está sendo discutido.
Como já mencionei anteriormente, é o texto que leva o corpo e gera a ação. Os personagens jogam com a materialidade da palavra e ela produz as reações físicas, contudo, sem o envolvimento subjetivo. O texto é como uma massa manipulada externamente, ele não adere a individualidade do ator para voltar carregada dos seus sentimentos, modulações, interpretações e compreensões. O ator não deve se apropriar do texto para depois expressá-lo. O discurso, o texto, está sempre fora e vai passando de mão em mão e sendo utilizado por todos os atores. O texto existe da boca para fora, mas, é tão vivo e pulsante que a manipulação deste exige um esforço, a liberação de uma grande carga de energia e o envolvimento integral do corpo no processo em questão.
Nesse sentido, o espectador também tem seu papel. Ele passa a participar do debate. Ocorre uma quebra da lógica de leitura da cena que identifica caracteres ou personagens sociais ou mesmo ficcionais. Não é importante que o espectador veja, por exemplo, que este é o bonzinho e que aquele é vilão ou que este é cínico e que aquele é falso e assim por diante. Importa que o espectador esteja atento ao que está sendo discutido e problematizado.
Ao espectador que se depara pela primeira vez com uma obra de René Pollesch, poderá perceber um uso estranho do texto pelos atores, como se estivessem falando sem parar e num fluxo ininterrupto. Poderá soar quase amador, uma vez que não há uma preocupação em modular, criar pausas estratégicas ou explorar nuances. Não há nem mesmo preocupação com a pontuação. O texto sai daquela forma por uma necessidade do ator de dizer com determinada intensidade e de tentar materializar o que está sendo dito. Este pode ser um ponto interessante de análise, o ator em Pollesch trava uma batalha na tentativa de materializar um discurso, uma ideia. A conexão corpo e voz parte de uma intensa e genuína vontade de dizer aquilo que o próprio ator escolheu dizer.
Embora eu não tenha podido registrar em áudio ou vídeo, tive uma conversa informal com o diretor René Pollesch que, embora não tenha validade como dado de pesquisa, considero relevante relatar o que ouvi sobre o modo que Pollesch trabalha com os atores. De modo geral, ele não possui métodos para trabalhar com os atores e nem espera que os atores possuam algum método ou técnica. Espera sim, que saibam o que funciona e o que não funciona em um palco, o que fica bom, o que ele sabe fazer bem. As leis, regras ou métodos acabam formatando a atuação, segundo Pollesch. É claro que há algum conhecimento sobre atuação que pode ser explorado e sistematizado, como por exemplo, é possível explorar alguma modificação na composição de um personagem fugindo de estereótipos. O estabelecimento de algumas regras de atuação dentro do processo de criação pode trazer elementos interessantes e isto poderia ser, sim, entendido como uma espécie de método. Contudo, a principal estratégia de Pollesch é testar as ideias e trabalhá-las junto com os atores. Se uma ideia funciona, ela é mantida na obra, caso contrário é descartada.
Um fato curioso, é que nas encenações do encenador alemão, nada é estruturado e pode sempre mudar. Os atores e a cena mesmo, precisam seguir o fluxo que é da relação, escuta-contato-impulso-ação/reação concreta ao que está aí. Para ele,
a estruturação mata o vivo, o orgânico. O autêntico que nasce na criação somente morre se você tenta formatar em uma ideia externa a que está nascendo no trabalho do ator. É claro que é necessário marcar alguns pontos para que a encenação tenha uma forma repetível. Nesse caso há, sim, uma parte que é estruturada. Por exemplo, em Don Juan, na primeira cena, existe o texto e convencionamos que toda vez que determinada palavra é dita todos executam a ação de se jogar uns sobre os outros e se beijarem. Existem alguns códigos que orientam a cena e o restante segue o fluxo natural da própria ação.[2]
De certo modo, encontram-se duas camadas (o texto e o conjunto de códigos pré-estabelecidos), que são sobrepostas, mas não diretamente interligadas. No jogo e no equilíbrio entre ambas aparece uma estruturação que é livre, fluida e viva. Embora não haja a exploração da subjetividade dos atores e a linha seguida nesse teatro seja a do ator frio que não busca qualquer identificação com o personagem, que inclusive dispensa o personagem, não procura criar nenhum tipo de emoção e mesmo transmitir alguma emoção, a ordem dada pelo diretor é: “sinta um sentimento que ninguém conhece” (fühlen Gefühle, die niemand kennt) (POLESCH apud ERNST, 2011, p. 183), há um trabalho intersubjetivo em uma camada subterrânea da relação entre os atores e deles com o diretor. Dessa inter-relação, emerge a linha invisível de relações necessárias, de associações, de pontos de contato que guiam o ator ou atriz no decorrer do espetáculo.
Nesse sentido, é possível identificar uma característica similar a do trabalho de Thomas Ostermeier, também diretor alemão, e que confere um tipo de realismo sobre o palco que não é o realismo estético, mas, da concretude e realidade do modo de trabalho. Não há espaço para representação no teatro de Pollesch e a estratégia com o elenco é recorrer a estímulos concretos. Na peça Kill your Darllings, o ator Fabian Hinrichs entra em cena içado por uma corda. Ele está pendurado pela cintura e ao som de uma música suave é levado do alto do urdimento até o piso do palco junto com outros quatro figurantes. Trata-se de uma situação real de risco e que provoca sensações concretas em função da altitude e do corpo suspenso por uma corda presa apenas na cintura. Ao chegar no chão, o ator começa a correr por todo o palco enquanto fala um texto com conteúdo relativamente complexo. O falar e o correr simultaneamente desencadeia uma alteração no ritmo da respiração que altera a cadência e a modulação vocal. Embora ele faça uso do princípio verborrágico do teatro de Pollesch segundo o qual as palavras devem ser emitidas uma depois da outra sem recorrer aos modos usuais de imissão associadas aos sentidos relacionados a elas, o texto dito por Fabian vai adquirindo uma sonoridade e dinâmica característica de alguém que está muito cansado ou está numa situação física limite que poderia ser por desespero ou por ter presenciado algo terrível. Contudo, não há qualquer pano de fundo imagético, há uma situação autêntica de corrida que deixou o ser humano Fabian, ator da peça, ofegante e com o corpo exausto a ponto de, ao chegar no seu limite, cair no chão.
A cena descrita ilustra muito bem essa visão de Pollesch sobre a autenticidade e que está associada a fuga dos comportamentos previsíveis e comuns como reação a determinadas situações sociais. No caso da cena, o ator não tinha espaço para simular o cansaço ou recorrer a alguma inautenticidade característica de uma reação a uma situação de intensidade emocional ou física. Ele foi colocado concretamente em uma situação extrema na qual sua respiração sofreu inevitavelmente alterações o que desencadeou uma alteração no modo de falar gerando, por conseguinte, uma musicalidade diferente no texto e, ao mesmo tempo, uma descarga energética significativa por parte do ator e que foi sentida pelo público.
Tanto o ator de Iffland quanto o ator de Stanislávski, que tinham como objetivo maior a construção verossímil de um personagem, exploram a relação corpo e voz no sentido de alcançar uma harmonia absoluta sustentada pela ação orgânica e integral. A voz como extensão das ações do corpo e a serviço da correta melodia, harmonia, musicalidade e ritmo sugerida pela linha de ações internas do ator. Nesse sentido, a voz é também ação e opera na mesma direção das ações físicas. Se analisarmos este aspecto no trabalho dos atores nas encenações do diretor alemão René Pollesch, iremos encontrar uma característica que nos permitem esboçar um retrato de uma maneira singular de exploração da relação corpo-voz no trabalho do ator na cena atual.
Dessa forma, sobre o modo como o texto é dito nas montagens de Pollesch, trago como exemplo a peça Glanz und Elend der Kurtisanen na qual o mote é o fumar como pretexto para estar em contato e conversar. Os atores estão em pé entorno de um cinzeiro. Alguns tem cigarros, outros chegam e pedem um. Há por ali um maltrapilho, apenas caracterizado assim pelo figurino, que não é bem aceito inicialmente na conversa. Contudo ele se posiciona a esse respeito criticando que é excluído daquele círculo apenas por não estar enquadrado nos padrões de comportamento, estética e apresentação socialmente aceitos. Pois bem, o enredo importa menos nesse momento, mais relevante é o modo como falam. É como se o texto e as palavras não coubessem na boca, não coubessem na expressão oral. Ao mesmo tempo, é como se a linguagem articulada não conseguisse nem mesmo expressar a ideia por trás das palavras. Percebe-se um esforço enorme para falar, para encontrar a palavra certa e emiti-la de modo preciso. Nessa tentativa, o corpo passa a ser afetado como que tentando complementar o que está sendo dito. Assim, aparece uma gesticulação espasmódica e a coluna vertebral é completamente mobilizada a partir do centro, conferindo àquela atuação uma certa organicidade.
Ao mesmo tempo em que há uma dificuldade em usar adequadamente o discurso, há uma desconsideração das regras gramaticais e do uso convencional dos termos. Nesse caso, virgulas e pontos desaparecem e dão lugar a uma verborragia contínua e nervosa. Esse modo de trabalhar o texto, vai ao encontro do princípio de Pollesch segundo o qual o texto é uma massa concreta que está no espaço entre os atores e atrizes e deve ser manipulada, enfrentada. O texto tem vida própria e provoca reações corporais e sua própria cadência rítmica e melódica cabendo ao ator apenas permitir-se infectar por ele, assim como o público deverá ser infectado. O texto é uma grande bola que hora está na mão de um ator e hora na mão de outro. Quem o recebe se permite infectar, reage, joga com a boa, a apalpa, sente seu peso e a joga para o outro. No teatro de Pollesch não há diálogo, há uma conversa e o texto é um grande monólogo falado por várias vozes em situação de conversa.
Nesse sentido, vê-se uma atuação extremamente verdadeira, dentro daquela convenção, e energética no sentido de uma mobilização de energia e sua irradiação ou contenção a depender da dinâmica de infecção do público em determinado momento. Esse princípio energético é uma característica pungente no teatro desse encenador. Os atores parecem o tempo inteiro manipular os momentos de descarga e contenção criando uma constante suspensão da atenção intercalada por instantes de gozo e relaxamento.
[1] Ator, produtor e pesquisador, doutor e mestre em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, UFBA.
[2] Esta fala é oriunda de uma conversa informal com o diretor René Pollesch e da qual não houve qualquer tipo de registro. Contudo, considerei relevante citá-la nesse trabalho por ter me ajudado a entender melhor o modo como Pollesch aborda a questão do texto no trabalho com os atores.