Leonel Henckes

Claras em Neve

Estive a cozinhar hoje. Na verdade passei a tarde na cozinha acompanhado de uma boa conversa com minha colega de apartamento Lilih. Participaram do evento boas xícaras de café (expresso preparado com grãos colombianos roubados do outro colega de apartamento, Matias.). Estávamos empenhados em produzir dois pratos, um salgado e outro doce. Para tanto, empreendemos uma vasta busca pela internet a fim de descobrirmos as receitas mais adequadas ao momento e aos ingredientes disponíveis.

Uma vez finda esta primeira etapa, e tendo escolhido uma torta salgada e um bolo gelado, mergulhamos na artesania culinária na esperança de, ao final, termos bons (e gostosos) resultados poéticos, estéticos e gastronômicos. Meu interesse não é relatar em detalhes o processo culinário vivenciado, mas, tratar de um ponto interessante desvelado ao longo dele. O tempo.

Estava eu batendo claras em neve e acrescentando outros ingredientes “a posteriori” conforme a receita fosse indicando e, ao contrário do que geralmente faço, atentei aos tempos sugeridos na poesia da receita e aos respectivos “pontos” ou “estados” pretendidos.

Logo que as claras começam a ser batidas, a impressão que se tem é que dali não sairá absolutamente nada, quanto mais uma homogênea massa branca e fofa. Mais ainda, quando o açúcar é acrescido e tudo desanda de um modo aterrorizante. O desespero toma conta da cozinha ao ver que aquela fofa espuma desapareceu fazendo surgir um algo cremoso e turvo. Tudo bem! Sigo batendo acreditando que algo irá acontecer (a receita informava: “bata até se formar uma massa homogênea – aliás esta palavra é recorrente em todas as receitas.), acreditando que aquela mistura atingirá um “estado” capaz de me fazer vislumbrar novamente o sucesso do evento culinário em curso.

Após alguns minutos (cinco talvez) algo ganha força no interior da tigela. É como se a massa fosse entendendo sua natureza, o desenvolvimento das circunstâncias, a atmosfera esboçada, o tônus necessário e seu movimento, então, começou a emergir de forma consistente e plástica. Era uma massa dilatada. Com atitude e presença.  (parece que estou falando do ator).

Chamo a atenção, pois, a natureza do labor empreendido. Em dois momentos, houve um total dilaceramento dos sentidos (estou lendo Rimbaud) nas misturas pré-existentes: as claras de ovo e, depois, as claras em neve (a propósito, me questionei durante esta experiência quanto a história das claras em neve. Em que momento alguém teve a feliz idéia de pegar um ovo, separar as duas substâncias nele contidas assim distinguidas por cor e textura e bater a mais “clara” até esta se transformar em “claras em neve”, fiquei curioso…), após este estado inicial de desordem, uma nova organização passa a acontecer no interior da tigela da batedeira, é como se a substância desorientada, dilacerada compreendesse uma outra lógica de sentido que demandava uma forma diferente e com qualidades diferentes sem, para isso, perder o contato com a existência primeira. Além disso, ao tornar-se “claras em neve” e com o acréscimo do açúcar desorientar-se, dilacerar-se uma vez mais como já havia ocorrido ao sair do ovo, evidenciou-se que aquele acontecimento poderia se repetir muitas vezes ainda. Nesse sentido, poderia direcionar meu ponto de vista para o processo das misturas considerando que a cada dilaceramento e transformação houve um crescente de força, densidade, plasticidade, precisão, enfim, vários elementos que denotam um fluxo benéfico. Todavia, quero retornar a questão do tempo.

A sequência do trabalho de feitura da receita doce foi de acréscimo de ingredientes intercalados por tempos de batida. Finalmente, chegou o momento de inserir o último elemento da receita. O fermento. Seguindo a risca as orientações escritas, coloquei a “colher de sopa” e bati por quarenta segundos. Um percurso mínimo e sutil. Um ingrediente posto em quantidade pequena e um tempo sugerido de mistura, curto. Contudo, o mesmo dilaceramento do sentidos ocorreu, a mesma apreensão quanto ao insucesso daquela ação apareceu e, no decorrer dos quarenta segundos rigorosamente contados, a massa foi se transformando e adquirindo novos leves matizes até finalizar-se no “ponto”, ou seja, como uma massa homogênea. Foi perceptível a mudança, a pequena mudança, da desordem para a nova ordem num intervalo de tempo curto, mas, necessário. Se eu parasse de bater segundos antes o efeito não se daria, minutos depois poderia desandar de novo. O mesmo ocorreu no assar. Quarenta minutos, dizia. Após o tempo transcorrido estava pronto e no ponto. Compreendi de imediato que as “três horas na geladeira” eram absolutamente inquestionáveis. O tempo foi decisivo em cada momento da criação culinária.

Finda nossa aventura laboriosa na cozinha. Olho o relógio e é hora do sol se por. São necessárias ainda três horas para a torta doce ficar pronta.